O “despejo” do Eataly Brasil e as reviravoltas que aconteceram no processo judicial evidenciaram um problema recorrente no Poder Judiciário e, nesse caso, no mercado imobiliário de locação: a falta de critérios objetivos e a insegurança jurídica na retomada de imóveis comerciais em casos de inadimplência, ocupados por locatários com pedido de recuperação judicial em curso.
O Eataly é uma rede criada pelo italiano Oscar Farinetti, que combina experiência gastronômica, um mercado de alimentos de luxo e aprendizado sobre a cultura italiana. No Brasil, a unidade está localizada em São Paulo, na Avenida Juscelino Kubitschek. O negócio, entretanto, estaria enfrentando dificuldades desde a pandemia. Segundo a recuperação judicial, a dívida do Eataly é de aproximadamente R$ 50 milhões.
Sobre a ação de despejo, inicialmente, um pedido de liminar foi indeferido. No curso do processo, após a demonstração pelo locador a respeito da fragilização da garantia locatícia, o juiz determinou a desocupação do imóvel onde funciona o Eataly. No entanto, em uma decisão, no mínimo, controversa, o tribunal reverteu o entendimento e permitiu que a locatária permanecesse no local, mesmo sem quitar integralmente sua dívida, sob o véu do argumento “essencialidade do imóvel para recuperação da empresa”. Fica a reflexão: às custas de quem?
A par dos detalhes desse caso, é importante ponderar que esse tipo de decisão cria um cenário de incerteza que prejudica todo o setor imobiliário, desestimulando investimentos e fragilizando a relação contratual entre locadores e locatários. Se contratos de locação podem ser ignorados e locadores não têm segurança de que conseguirão retomar seus imóveis em caso de inadimplência – quando a empresa tem em curso um procedimento de
recuperação judicial -, o mercado perde previsibilidade, perde estabilidade, sofrendo com isso o fluxo de negócios e o desenvolvimento econômico.
A insegurança jurídica e a ausência de critérios uniformes
O grande problema evidenciado pelo caso do Eataly não se limita à inadimplência, mas à inconsistência nas decisões judiciais Brasil afora. Enquanto alguns tribunais garantem o direito de retomada do imóvel pelo locador, outros permitem que empresas inadimplentes permaneçam nos imóveis em privilégio da sua “recuperação” judicial.
Essa falta de uniformidade mina a segurança jurídica do mercado. Um exemplo claro dessa divergência vem do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), que, em um caso semelhante, que acompanhei de cabo a rabo, determinou o despejo de um locatário inadimplente, mesmo diante de um pedido de recuperação judicial. O entendimento foi de que a ação eminentemente de despejo não se confunde com a cobrança de dívida e que o locador tem o direito de recuperar seu imóvel, independentemente da situação financeira do locatário.
Se esse mesmo princípio tivesse sido aplicado ao caso do Eataly, o imóvel já teria sido desocupado, permitindo que o proprietário exercesse legitimamente todos os atributos da sua propriedade. Ao contrário do que algumas decisões sugerem, um locador que ajuíza ação de despejo por falta de pagamento não age como credor da empresa, mas sim como proprietário, buscando a retomada de um bem que lhe pertence. Essa distinção é essencial.
Além disso, é fundamental esclarecer que o juízo que processa a recuperação judicial de uma empresa não é o mesmo que processa ações de despejo.
Enquanto a recuperação tramita na vara especializada de falências e recuperações judiciais, a ação de despejo é tratada, por exceção ao princípio do juízo universal, na vara cível competente. Permitir que uma decisão na recuperação judicial impacte automaticamente a retomada do imóvel locado gera, me parece, uma sobreposição de competências e reforça a insegurança jurídica.
O impacto da instabilidade no mercado imobiliário
A falta de previsibilidade jurídica tem um efeito cascata negativo em toda a economia. O mercado imobiliário, essencial para o crescimento das cidades, depende de regras claras para funcionar corretamente. Quando decisões judiciais são contraditórias, a confiança dos investidores enfraquece, tornando o ambiente menos atrativo para novos negócios.
Além disso, permitir que empresas inadimplentes permaneçam nos imóveis sem cumprir suas obrigações contratuais configura uma afronta ao direito de propriedade dos locadores. O contrato de locação deve ser cumprido por ambas as partes e flexibilizações arbitrárias desse tipo desequilibram a relação contratual, aumentando os riscos do setor e desestimulando novos investimentos.
Essa incerteza também afeta diretamente o crédito imobiliário. Bancos e investidores passam a enxergar riscos elevados no setor, tornando os financiamentos mais restritivos. No longo prazo, não é demais dizer, isso pode levar a uma menor oferta de imóveis comerciais disponíveis, freando a expansão do setor e impactando negativamente a economia como um todo.
A recuperação judicial não pode ser um artifício para postergar despejos
A recuperação judicial é um instrumento legítimo para a reestruturação de empresas, mas não pode ser usada de maneira indiscriminada para perpetuar no mercado inadimplentes frequentes e contumazes. Não que seja esse o caso, mas tem-se visto empresas locatárias inadimplentes, que já tiveram oportunidades para quitar suas dívidas e se organizar – o que passa por diminuir seu custo operacional, inclusive com aluguel – mas algumas se valem de manobras judiciais para adiar a desocupação.
O que se observa, em alguns casos, é o uso frívolo da recuperação judicial como um artifício protelatório (alguns chamam de calote institucionalizado), mesmo quando o imóvel não é essencial – quem define o que é? – para a atividade empresarial. Essa prática, além de representar um abuso do direito, prejudica o funcionamento saudável do mercado imobiliário e enfraquece a credibilidade das regras contratuais.
É urgente que o Judiciário estabeleça critérios claros sobre a essencialidade do imóvel para a atividade da empresa e os limites da recuperação judicial nesse contexto, ou o mercado imobiliário continuará vulnerável a esse tipo de distorção. A falta de uniformidade nas decisões abre espaço para abusos e afasta investidores.
Uniformização de entendimentos
A decisão do TJSP de suspender o despejo do Eataly reforça a insegurança jurídica no mercado imobiliário e traz uma importante oportunidade de reflexão sobre esse assunto, para que se evite o comprometimento da estabilidade dos contratos.
Se a recuperação judicial continuar sendo utilizada como um instrumento para impedir despejos legítimos sem critérios objetivos, o impacto será sentido não apenas pelos locadores, mas por todo o setor imobiliário.
É fundamental que o Poder Judiciário, nacionalmente, uniformize seus entendimentos, evitando decisões contraditórias e a falta de critério. Se o setor imobiliário não puder confiar na segurança jurídica, o efeito será um desestímulo generalizado, um aumento na judicialização e um entrave ao crescimento econômico do país.